quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Enquanto - António Gedeão


(Pintura de Portinari)
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"Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio
e um sargento que lhe volta o corpo
com a ponta do pé para ver como é;
enquanto o sangue gorgolejar das artérias aberta
se correr pelos interstícios das pedras,
pressuroso e vivo como vermelhas minhocas despertas;
enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,
órfãs de pais e de mães, andarem acossadas pelas ruas como matilhas de cães;
enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto
com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,
num silêncio de espanto rasgado pelo grito da sereia estridente;
enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio
cobrir o mundo com a sombra escaldante
das suas asas amassando na mesma lama de extermínio
os ossos dos homens e as traves das suas casas;
enquanto tudo isto acontecer, e o mais que se não diz por ser verdade,
enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia,
o poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:
ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA"
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