sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Saudade - José Bonifácio


(Tela de Carl Larsson)
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Eu já tive em belos tempos
Alguns sonhos de criança;
Já pendurei nas estrelas
A minha verde esperança;
Já recolhi pelo mundo
Muita suave lembrança.
Sonhava então - e que sonhos
Minha mente acalentaram?!
Que visões tão feiticeiras
Minhas noites embalaram?!
Como eram puros os raios
De meus dias que passaram?!
Tinha um anjo de olhos negros,
Um anjo puro e inocente,
Um anjo que me matava
Só c'um olhar - de repente,
- Olhar que batia na alma,
Raio de luz transparente!
Quando ela ria, e que riso?!
Quando chorava - que pranto?!
Quando rezava, que prece!
E nessa prece que encanto?!
Quando soltava os cabelos,
Como esparzia quebranto!
Por entre o chorão das campas
Minhas visões se ocultaram;
Meus pobres versos perdidos
Todos, todos acabaram;
De tantas rosas brilhantes
Só folhas secas ficaram!
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quinta-feira, 28 de agosto de 2008

É Preciso não Esquecer Nada - Cecília Meireles


(Tela de William Bouguereau)
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É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta nem o fogo aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.
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É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.
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O que é preciso é esquecer o nosso rosto,
o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso.
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O que é preciso esquecer é o dia carregado de atos,
a idéia de recompensa e de glória.
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O que é preciso é ser como se já não fôssemos,
vigiados pelos próprios olhos
severos conosco, pois o resto não nos pertence.
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quarta-feira, 27 de agosto de 2008

As Lentas Nuvens Fazem Sono - Fernando Pessoa


(Tela de Rob Gonsalves)
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As lentas nuvens fazem sono,
O céu azul faz bom dormir.
Bóio, num íntimo abandono,
À tona de me não sentir.
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E é suave, como um correr de água,
O sentir que não sou alguém,
Não sou capaz de peso ou mágoa.
Minha alma é aquilo que não tem.
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Que bom, à margem do ribeiro
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Saber que é ele que vai indo...
E só em sono eu vou primeiro.
E só em sonho eu vou seguindo.
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terça-feira, 26 de agosto de 2008

Meu Professor de Análise Sintática - Paulo Leminski

(Tela de Edgar Degas)
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Meu professor de análise sintática era o tipo do
sujeito inexistente.
Um pleonasmo, o principal predicado da sua vida,
regular com um paradigma da 1ª conjugação.
Entre uma oração subordinada e um adjunto adverbial,
ele não tinha dúvidas: sempre achava um jeito
assindético de nos torturar com um aposto.
Casou com uma regência.
Foi infeliz.
Era possessivo como um pronome.
E ela era bitransitiva.
Tentou ir para os EUA.
Não deu.
Acharam um artigo indefinido em sua bagagem.
A interjeição do bigode declinava partículas expletivas,
conetivos e agentes da passiva, o tempo todo.
Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça.
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quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Por Guimarães Rosa ...



(Tela de Van Gogh)
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"Eu atravesso as coisas- e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mais vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso?"
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segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Dor - Alvaro Moreyra


(Tela de Wassily Kandinsky)
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Fiz noutro tempo (dela se priva
E com saudades o meu prazer)
E com dor fina, decorativa,
Especialmente para eu sofrer...
Tão desvairada, tão delirante
Que parecia não ter mais fim...
Durou cinco anos.
Durou bastante.
Uma alegria não dura assim...
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sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Criança - Sylvia Plath


(Tela de Neiva Passuello)
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O olho claro é a coisa mais bonita em você.
Quem dera enchê-lo de patos e cores,
Zôo do novo,
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Nomes em que você pensa
Campânula-de-abril, Cachimbo-de-índio,
Pequenino
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Caule sem espinhos,
Lago em cujas margens, imagens
Pudessem ser clássicas e imensas
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Não esse tenso
Torcer de mãos, esse teto
Escuro e sem estrela.
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Tradução de Rodrigo G. Lopes e Maurício A. Mendonça
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quarta-feira, 13 de agosto de 2008

O Dom da Alegria - Helena Kolody

(Tela de Clarice Lispector)
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Talvez, a cruz dos outros pese mais que a tua...
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Torna mais leve o lenho da existência
No dolorido ombro alheio,
Embora o teu sangre e doa.
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terça-feira, 12 de agosto de 2008

Emoção e Poesia - Fernando Pessoa


(Tela de August Macke)
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Quem quer que seja de algum modo um poeta sabe muito bem quão mais fácil é escrever um bom poema (se os bons poemas se acham ao alcance do homem) a respeito de uma mulher que lhe interessa muito do que a respeito de uma mulher pela qual está profundamente apaixonado. A melhor espécie de poema de amor é, em geral, escrita a respeito de uma mulher abstrata.
Uma grande emoção é por demais egoísta; absorve em si própria todo o sangue do espírito, e a congestão deixa as mãos demasiado frias para escrever. Três espécies de emoções produzem grande poesia - emoções fortes e profundas ao serem lembradas muito tempo depois; e emoções falsas, isto é, emoções sentidas no intelecto. Não a insinceridade, mas sim, uma sinceridade traduzida, é a base de toda a arte.
O grande general que pretende ganhar uma batalha para o império de seu país e para a história de seu povo não deseja - não pode desejar ter muitos de seus soldados assassinados(mortos). Contudo, uma vez que tenha penetrado na contemplação de sua estratégia, escolherá (sem um pensamento para seus homens) o golpe melhor, embora o faça perder cem mil homens, em vez da estratégia pior, ou mesmo a mais lenta, que lhe pode deixar nove décimos daqueles homens com quem e por quem luta, e a quem, em geral, ama.
Torna-se um artista por amor a seus compatriotas, e expõe-nos à carnificina por causa de sua estratégia.
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segunda-feira, 11 de agosto de 2008

11 de Agosto - Dia do Advogado

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(Tela de Marília Chaturne)
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"A diferença entre ser advogado e estar advogado reside no sangue. Naquele que é advogado, corre nas veias com incomum energia, porque o advogado não teme desafios. Quando pede ou contrapõe o faz com espírito de Justiça. Sua companheira fiel (palavra escrita ou verbal) às vezes é contundente, às vezes áspera, às vezes diplomática e serena, mas sempre utilizada em dose adequada, sem ódios ou ressentimentos. Apenas paixão. A paixão do justo, do inconformado, do lutador, daquele que busca a aplicação da Justiça. Por isso não desanima, por isso tem energia e vigor suficientes para batalhar sem nada temer ou ocultar. Não exerce a profissão para ganhar dinheiro. Paradoxalmente, quando recebe um simples agradecimento, um "muito obrigado" sincero, um sorriso daquele que não tem como pagar-lhe pelo serviço, sente-se recompensado como se houvesse ganho um tesouro cheio de moedas. Este é o verdadeiro advogado. Um cidadão. Um bravo lutador. Ético e disciplinado. Nem mesmo o passar dos anos lhe verga, porque a experiência lhe dá energia. E assim segue e seguirá até o momento final. Honrando a profissão que escolheu e exerce. Um dia, quando for lembrado em uma reunião, numa conversa entre amigos, num evento, numa homenagem, ao interlocutor não será dada a oportunidade de discorrer sobre seu curriculum, seu tronco familar, sua descendência, suas características pessoais, seu patrimônio. Bastará simplesmente dizer: ele foi ADVOGADO.
Esta mensagem é dirigida àqueles que são advogados (muitos aqui não nominados por falta de espaço. Mas lembrados). Caminhemos..."
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Mensagem escrita por José Francisco Machado de Oliveira
Advogado em Curitiba/PR
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sábado, 9 de agosto de 2008

A Construção - Mário Quintana

(Tela de Gustav Klimt)
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Eles ergueram a torre de Babel
para escalar o Céu.
Mas Deus não estava lá!
Estava ali mesmo, entre eles,
ajudando a construir a torre.
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sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Versos - Florbela Espanca


(Tela de Monet)
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Versos! Versos! Sei lá o que são versos...
Pedaços de sorriso, branca espuma,
Gargalhadas de luz. cantos dispersos,
Ou pétalas que caem uma a uma.
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Versos!... Sei lá! Um verso é teu olhar,
Um verso é teu sorriso e os de Dante
Eram o seu amor a soluçar
Aos pés da sua estremecida amante!
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Meus versos!... Sei eu lá também que são...
Sei lá! Sei lá!... Meu pobre coração
Partido em mil pedaços são talvez...
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Versos! Versos! Sei lá o que são versos.
Meus soluços de dor que andam dispersos
Por este grande amor em que não crês!...
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quinta-feira, 7 de agosto de 2008

A Massacrante Felicidade dos Outros - Martha Medeiros



(Tela de Rob Gonsalves)
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Ao amadurecer, descobrimos que a grama do vizinho não é mais verde coisíssima nenhuma. Estamos todos no mesmo barco. Há no ar um certo queixume sem razões muito claras.
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Converso com mulheres que estão entre os 40 e 50 anos, todas com profissão, marido, filhos, saúde, e ainda assim elas trazem dentro delas um não-sei-o-quê perturbador, algo que as incomoda, mesmo estando tudo bem. De onde vem isso?
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Anos atrás, a cantora Marina Lima compôs com o seu irmão, o poeta Antonio Cícero, uma música que dizia: 'Eu espero/ acontecimentos/ só que quando anoitece/ é festa no outro apartamento' .
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Passei minha adolescência com esta sensação: a de que algo muito animado estava acontecendo em algum lugar para o qual eu não tinha convite. É uma das características da juventude: considerar-se deslocado e impedido de ser feliz como os outros são, ou aparentam ser. Só que chega uma hora em que é preciso deixar de ficar tão ligada na grama do vizinho.
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As festas em outros apartamentos são fruto da nossa imaginação, que é infectada por falsos holofotes, falsos sorrisos e falsas notícias. Os notáveis alardeiam muito suas vitórias, mas falam pouco das suas angústias, revelam pouco suas aflições, não dão bandeira das suas fraquezas, então fica parecendo que todos estão comemorando grandes paixões e fortunas, quando na verdade a festa lá fora não está tão animada assim.
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Ao amadurecer, descobrimos que estamos todos no mesmo barco, com motivos pra dançar pela sala e também motivos pra se refugiar no escuro, alternadamente. Só que os motivos pra se refugiar no escuro raramente são divulgados pra consumo externo.
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'Todos são belos, sexys, lúcidos, íntegros, ricos, sedutores, social e filosoficamente corretos. Parece que ninguém, nenhum deles, nunca levou porrada. Parece que todos têm sido campeões em tudo'.
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Fernando Pessoa também já se sentiu abafado pela perfeição alheia, e olha que na época em que ele escreveu estes versos não havia esta overdose de revistas que há hoje, vendendo um mundo de faz-de-conta. Nesta era de exaltação de celebridades - reais e inventadas - fica difícil mesmo achar que a vida da gente tem graça.
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Mas tem.
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Paz interior, amigos leais, nossas músicas, livros, fantasias, desilusões e recomeços, tudo isso vale ser incluído na nossa biografia. Ou será que é tão divertido passar dois dias na Ilha de Caras fotografando junto a todos os produtos dos patrocinadores? Compensa passar a vida comendo alface para ter o corpo que a profissão de modelo exige?
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Será tão gratificante ter um paparazzo na sua cola cada vez que você sai de casa? Será bom só sair de casa com alguém todo tempo na sua cola a título de segurança? Estarão mesmo todas essas pessoas realizando um milhão de coisas interessantes enquanto só você está em casa, lendo, desenhando, ouvindo música, vendo seu time jogar, escrevendo, tomando seu uisquinho?
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Tenha certeza que as melhores festas acontecem sempre dentro do nosso próprio apartamento.
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terça-feira, 5 de agosto de 2008

O Nascimento da Crônica - Machado de Assis


(Tela de Paul Klee)
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Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e La glace est rompue; está começada a crônica.
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Mas, leitor amigo, esse meio é mais velho ainda do que as crônicas, que apenas datam de Esdras. Antes de Esdras, antes de Moisés, antes de Abraão, Isaque e Jacó, antes mesmo de Noé, houve calor e crônicas. No paraíso é provável, é certo que o calor era mediano, e não é prova do contrário o fato de Adão andar nu. Adão andava nu por duas razões, uma capital e outra provincial. A primeira é que não havia alfaiates, não havia sequer casimiras; a segunda é que, ainda havendo-os, Adão andava baldo ao naipe. Digo que esta razão é provincial, porque as nossas províncias estão nas circunstâncias do primeiro homem.
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Quando a fatal curiosidade de Eva fez-lhes perder o paraíso, cessou, com essa degradação, a vantagem de uma temperatura igual e agradável. Nasceu o calor e o inverno; vieram as neves, os tufões, as secas, todo o cortejo de males, distribuídos pelos doze meses do ano.
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Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; mas há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma dia que não pudera comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais ensopando que as ervas que comera. Passar das ervas às plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fácil, natural e possível do mundo. Eis a origem da crônica.
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Que eu, sabedor ou conjeturador de tão alta prosápia, queira repetir o meio de que lançaram mãos as duas avós do cronista, é realmente cometer uma trivialidade; e contUdo, leitor, seria difícil falar desta quinzena sem dar à canícula o lugar de honra que lhe compete. Seria; mas eu dispensarei esse meio quase tão velho como o mundo, para somente dizer que a verdade mais incontestável que achei debaixo do sol é que ninguém se deve queixar, porque cada pessoa é sempre mais feliz do que outra.
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Não afirmo sem prova.
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Fui há dias a um cemitério, a um enterro, logo de manhã, num dia ardente como todos os diabos e suas respectivas habitações. Em volta de mim ouvia o estribilho geral: que calor! Que sol! É de rachar passarinho! É de fazer um homem doido!
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Íamos em carros! Apeamo-nos à porta do cemitério e caminhamos um longo pedaço. O sol das onze horas batia de chapa em todos nós; mas sem tirarmos os chapéus, abríamos os de sol e seguíamos a suar até o lugar onde devia verificar-se o enterramento. Naquele lugar esbarramos com seis ou oito homens ocupados em abrir covas: estavam de cabeça descoberta, a erguer e fazer cair a enxada. Nós enterramos o morto, voltamos nos carros, c dar às nossas casas ou repartições. E eles? Lá os achamos, lá os deixamos, ao sol, de cabeça descoberta, a trabalhar com a enxada. Se o sol nos fazia mal, que não faria àqueles pobres-diabos, durante todas as horas quentes do dia?
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segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Basta Pensar em Sentir - Fernando Pessoa


(Tela de Wassily Kandinsky)
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Basta pensar em sentir
Para sentir em pensar.
Meu coração faz sorrir
Meu coração a chorar.
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Depois de parar de andar,
Depois de ficar e ir,
Hei de ser quem vai chegar
Para ser quem quer partir.
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Viver é não conseguir.
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domingo, 3 de agosto de 2008

Meu Coração - Auta de Souza

(Gravura de Cícero Dias)
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Meu coração é como a noite escura,
Cercada só de dores adormidas,
É como um negro túmulo vazio
Onde repousam esperanças idas.
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Meu coração é como a folha murcha
Que o vento frio desligou da flor,
É como um'ave que se vê sozinha
Sem lar, sem pão, sem vida e sem amor.
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Meu coração é como a nota triste
Que se evola dos sinos magoados,
Quando da Igreja nas serenas torres
A gemer, a gemer dobram finados.
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Meu coração é como a nuvem negra
Que cobre a terra nas manhãs geladas,
É uma pálida andorinha morta
Num leito frio de ilusões passadas.
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sábado, 2 de agosto de 2008

Aqui está minha vida - Cecília Meireles




(Tela de Gustav Klimt)
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Aqui está minha vida
Esta areia tão clara com desenhos de
andar
Dedicados ao vento.
Aqui está minha voz,
Esta concha vazia, sombra de som
Curtindo seu próprio lamento.
Aqui está minha dor,
Este coral quebrado,
Sobrevivendo ao seu patético momento.
Aqui está minha herança,
Este mar solitário
Que de um lado era amor, e de outro,
Esquecimento.

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sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Exausto - Adélia Prado

(Tela de Gaugin)
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Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o profundo sono das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.
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