terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Serenidade És Minha – Raul de Carvalho


(Tela de Van Gogh)
À Memória de Fernando Pessoa

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Vem, serenidade!

Vem cobrir a longa

fadiga dos homens,

este antigo desejo de nunca ser feliz

a não ser pela dupla humanidade das bocas.

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Vem serenidade!

Faz com que os beijos cheguem à altura dos ombros

e com que os lábios cheguem à altura dos beijos.

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Carrega para a cama dos desempregados

todas as coisas verdes, todas as coisas vis

fechadas no cofre das águas:

os corais, as anémonas, os montros sublunares,

as algas, porque um fio de prata lhes enfeita os cabelos.

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Vem serenidade,

om o país veloz e virginal das ondas,

com o martírio leve dos amantes sem Deus,

com o cheiro sensual das pernas no cinema,

com o vinho e as uvas e o frémito das virgens,

com o macio ventre das mulheres violadas,

com os filhos que os pais amaldiçoam,

com as lanternas postas à beira dos abismos,

e os segredos e os ninhos e o feno

e as procissões sem padre, sem anjos e, contudo,

com Deus molhando os olhos

e as esperanças dos pobres.

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Vem, serenidade,

com a paz e a guerra

derrubar as selvagens

florestas do instinto.

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Vem, e levanta

palácios na sombra.

Tem a paciência de quem deixa entre os lábios

um espaço absoluto.

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Vem, e desponta,

oriunda dos mares,

orquídea fresca das noites vagabundas,

serena espécie de contentamento,

surpresa, plenitude.

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Vem dos prédios sem almas e sem luzes,

dos números irreais de todas as semanas,

dos caixeiros sem cor e sem família,

das flores que rebentam nas mãos dos namorados,

dos bancos que os jardins afogam no silêncio,

das jarras que os marujos trazem sempre da China,

dos aventais vermelhos com que as mulheres esperam

a chegada da força e da vertigem.

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Vem, serenidade,

e põe no peito sujo dos ladrões

a cruz dos crimes sem cadeia,

põe na boca dos pobres o pão que eles precisam,

põe nos olhos dos cegos a luz que lhes pertence.

Vem nos bicos dos pés para junto dos berços,

para junto das campas dos jovens que morreram,

para junto das artérias que servem

de campo para o trigo, de mar para os navios.

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Vem, serenidade!

E do salgado bojo das tuas naus felizes

despeja a confiança,

a grande confiança.

Grande como os teus braços,

grande serenidade!

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E põe teus pés na terra,

e deixa que outras vozes

se comovam contigo

no Outono, no Inverno,

no Verão, na Primavera.

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Vem, serenidade,

para que não se fale

nem de paz nem de guerra nem de Deus,

porque foi tudo junto

e guardado e levado

para a casa dos homens.

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Vem, serenidade,

vem com a madrugada,

vem com os anjos de oiro que fugiram da Lua,

com as núvens que proíbem o céu,

vem com o nevoeiro.

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Vem com as meretrizes que chamam da janela,

volume dos corpos saciados na cama,

as mil aparições do amor nas esquinas,

as dívidas que os pais nos pagam em segredo,

as costas que os marinheiros levantam

quando arrastam o mar pelas ruas.

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Vem serenidade,

e lembra-te de nós,

que te esperamos há séculos sempre no mesmo sítio,

um sítio aonde a morte tem todos os direitos.

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Lembra-te da miséria dourada dos meus versos,

desta roupa de imagens que me cobre

corpo silencioso,

das noites que passei perseguindo uma estrela,

do hálito, da fome, da doença, do crime,

com que dou vida e morte

a mim próprio e aos outros.

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Vem serenidade,

e acaba com o vício

de plantar roseiras no duro chão dos dias,

vício de beber água

com o copo do vinho milagroso do sangue.

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Vem, serenidade,

não apagues ainda

a lâmpada que forra

os cantos do meu quarto,

papel com que embrulho meus rios de aventura

em que vai navegando o futuro.

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Vem, serenidade!

E pousa, mais serena que as mãos de minha Mãe,

mais húmida que a pele marítima da cais,

mais branca que o soluço, o silêncio, a origem,

mais livre que uma ave em seu voo,

mais branda que a grávida brandura do papel em que escrevo,

mais humana e alegre que o sorriso das noivas,

do que a voz dos amigos, do que o sol nas searas.

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Vem serenidade,

para perto de mim e para nunca

.… … ... … ... … … … … … … … … … … … … … … … … … … …

De manhã, quando as carroças de hortaliça

chiam por dentro da lisa e sonolenta

tarefa terminada,

quando um ramo de flores matinais

é uma ofensa ao nosso limitado horizonte,

quando os astros entregam ao carteiro surpreendido

mais um postal da esperança enigmática,

quando os tacões furados pelos relógios podres,

pelas tardes por trás das grades e dos muros,

pelas convencionais visitas aos enfermos,

formam, em densos ângulos de humano desespero,

uma núvem que aumenta a vâ periferia

que rodeia a cidade,

é então que eu peço como quem pede amor:

Vem serenidade!

Com a medalha, os gestos e os teus olhos azuis,

vem, serenidade!

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Com as horas maiúsculas do cio,

com os músculos inchados da preguiça,

vem, serenidade!

Vem, com o perturbante mistério dos cabelos,

o riso que não é da boca nem dos dentes

mas que se espalha, inteiro,

num corpo alucinado de bandeira.

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Vem serenidade,

antes que os passos da noite vigilante

arranquem as primeiras unhas da madrugada,

antes que as ruas cheias de corações de gás

se percam no fantástico cenário da cidade,

antes que, nos pés dormentes dos pedintes,

a cólera lhes acenda brasas nos cinco dedos,

a revolta semeie florestas de gritos

e a raiva vá partir as amarras diárias.

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Vem, serenidade,

leva-me num vagon de mercadorias,

num convés de algodão e borracha e madeira,

na hélice emigrante, na tábua azul dos peixes,

na carnívora concha do sono.

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Leva-me para longe

deste bíblico espaço,

desta confusão abúlica dos mitos,

deste enorme pulmão de silêncio e vergonha.

Longe das sentinelas de mármore

que exigem passaporte a quem passa.

A bordo, no porão,

conversando com velhos tripulantes descalços,

crianças criminosas fugidas à polícia,

moços contrabandistas, negociantes mouros,

emigrados políticos que vão

em busca da perdida liberdade.

Vem, serenidade

e leva-me contigo.

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Com ciganos comendo amoras e limões,

e música de harmónio, e ciúme, e vinganças,

e subindo nos ares o livre e musical

facho rubro que une os seios da terra ao Sol.

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Vem, serenidade!

Os comboios nos esperam.

Há famílias inteiras com o jantar na mesa,

aguardando que batam, que empurrem, que irrompam

pela porta levíssima,

e que a porta se abra e por ela se entornem

os frutos e a justiça.

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Serenidade, eu rezo:

Acorda minha mãe quando ela dorme,

quando ela tem no rosto a solidão completa

de quem passou a noite perguntando por mim,

de quem perdeu de vista o meu destino.

Ajuda-me a cumprir a missão de poeta,

a confundir, numa só e lúcida claridade,

a palavra esquecida no coração do homem.

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Vem serenidade

lve os vencidos,

regulariza o trânsito cardíaco dos sonhos

e dá-lhes nomes novos,

novos ventos, novos portos, novos pulsos.

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E recorda comigo o barulho das ondas,

as mentiras da fé, os amigos medrosos,

os assombros da Índia imaginada,

o espanto aprendiz da nossa fala,

ainda nossa, ainda bela, ainda livre

destes montes altíssimos que tapam

as veias ao Oceano.

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Vem, serenidade,

e faz que não fiquemos doentes, só de ver

que a beleza não nasce dia a dia na terra.

E reúne os pedaços dos espelhos partidos,

e não cedas demais ao vislumbre de vermos

a nossa idade exacta

outra vez paralela ao percurso dos pássaros.

.

E dá asas ao peso

da melancolia,

e põe ordem no caoss e carne nos espectros,

e ensina aos suicidas a volúpia do baile,

e enfeitiça os dois corpos quando eles se apertarem,
e não apagues nunca o fogo que os consome,

o impulso que os coloca, nus e iluminados,
no topo das montanhas, no extremo dos mastros,

na chaminé do sangue.


Serenidade, assiste

à multiplicação original do Mundo:

Um manto terníssimo de espuma,

um ninho de corais, de limos, de cabelos,

um universo de algas despidas e retrácteis,

um polvo de ternura deliciosa e fresca.


Vem, e compartilha
das mais simples paixões,
do jogo que jogamos sem parceiro,

dos humilhantes nós que a garganta irradia,

da suspeita violenta, do inesperado abrigo.

Vem, com teu frio de esquecimento,

com a tua alucinante e alucinada mão,

e põe, no religioso ofício do poema,

a alegria, a fé, os milagres, a luz!



Vem, e defende-me
da traição dos encontros,

do engano na presença de Aquele
cuja palavra é silêncio,

cujo corpo é de ar,

cujo amor é demais

absoluto e eterno

para ser meu, que o amo.
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.
.
Para sempre irreal,

para sempre obscena,

para sempre inocente

Serenidade, és minha.
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