sábado, 10 de janeiro de 2009

Poesia, o nada que é tudo - Affonso Romano de Sant'Anna

(Tela de Mary Scott)
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Certa vez, o escritor argentino Santiago Kovadlof narrou que era adolescente quando entrou na sala de aula um professor que começou dizendo: “Quero lhes comunicar que sou professor de filosofia. E que filosofia não serve para nada”. Isto posto, diante da perplexidade dos alunos, acrescentou: “Peço-lhes apenas alguns minutos de atenção que vou lhes explicar o que é o ‘nada’”. Ao final da aula, diz Kovadlof, o seu futuro estava decidido: seria professor de “nada”, ou seja, de filosofia. Pois com a poesia ocorre algo semelhante. Dizem que a poesia não serve para nada. E, no entanto…
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Quando lhe disserem que a poesia não tem mais lugar nesse mundo dos diabos (porque no dos deuses sempre tem), não acredite. Quando lhe disserem que no planeta Bush continuam erguendo muros para separarem homens e culturas, observe que a poesia ainda pode congregar vozes e esperanças. E se eu tivesse dúvidas sobre isto, aqui nesta Feira de Livros de Frankfurt, onde as notícias , em geral, giram em torno de cifras de milhões, tanto de leitores de tal ou qual autor ou, então, de quanto o romancista X ou Y recebeu de adiantamento por um livro ainda não escrito, nesta feira pragmática e globalizada, a poesia abriu um clareira nos espessos interesses da selva capitalista.
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É que, no meio de tantos estandes onde os livros, como num esquife, aguardam que alguém lhes dê vida com o sopro de sua leitura, o “Internazionales Zentrum” instalou um auditório onde poetas convidados se apresentam. E preparou uma jornada especial chamada de “A noite dos 1001 poemas”, onde oito poetas selecionados, da China ao Iraque, da Argentina à Angola, do Marrocos à Guatemala, do Canadá ao Brasil, dizem seus poemas. Enquanto falamos, aparece num telão a tradução para o alemão. E após uma espécie de “talk show”, em que cada um responde questões sobre sua vida e obra, atores alemães fazem a leitura final de mais poemas de cada autor. São cinco horas ininterruptas de poesia. As pessoas passam, param e ficam ouvindo esses estranhos seres caídos de outra galáxia.
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O primeiro a apresentar-se é Humberto Ak’abal. Ergue-se com sua cabeleira de índio maya, com uma camisa branca com bordados coloridos e alguns colares no pescoço, e entoa um poema-hino, como o faziam os shamans de sua tribo, desde os tempos imemoriais do canto cosmogônico maya - o Popol Vuh. De repente, na moderníssima Frankfurt, cheia de prédios de aço e vidro, estamos em torno da fogueira acesa da palavra.
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E assim, até o final, quando o poeta marroquino Abdalla Zorika e sua esposa, a cantora Touria Hadrouni, sem acompanhamento instrumental, com a pureza tocante de sua voz, arranca das margens milenares do Mediterrâneo a lembrança de que poesia essencialmente é canto e palavra. Durante a apresentação dos colegas, eu tentava olhá-los com a estranheza que se tem que ter nos olhos quando queremos entender algo em toda a sua “estranhidade”. Por exemplo, aquele poeta chinês Xiao Kaiyn lendo seus textos e eu imaginando-o, lá nos arredores de Pequim, juntando seus caracteres para expressar sentimentos e perplexidades, tanto quanto esse iraquiano Sangon Bouloes ou a poeta da Indonésia, que ouvi ontem, assim como o francês-espanhol Claude Esteban, que noutra oportunidade se apresentou. Ali está Ana Paula Tavares, falando de sua sofrida Angola, Carmen Boulosa narrando a tragédia que viveu naquele 11 de setembro em Nova York, e Todd Swift, irrequieto e criativo poeta canadense, convertendo guerra e história em poesia. E, no entanto, dizem que a poesia não interessa a ninguém, que os poetas não têm nada que fazer nesta cruel sociedade eletronicamente bilionária e humanamente miserável.
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Nisto tudo, algo intrigante e mágico. Mesmo quando os poemas eram falados numa língua que não se entendia, uma imponderável comunicação cruzava o ambiente. A voz, ou seja, o fluir vibrante de uma certa melodia e ritmo; o corpo — mesmo os pequenos gestos intencionais e involuntários — ou o brilho no olhar constituíam parte de um texto expressivo. Isto lembrava-me de algo narrado por Chomsky- esse cientista da linguagem que narrou que um certo linguista, assistindo à leituras de poemas em línguas que não conhecia, era capaz de dizer quais eram os melhores e piores poemas e até a apontar quem seria o vencedor.
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Pode até haver um certo exagero em quem narrou-me essa história, mas isto lembra-me Alfonso Reyes e seu célebre estudo sobre as “jitanjáforas”, nome que deu a esses poemas que são jogos de palavras aparentemente ininteligíveis, mas que acabam por exprimir e/ou comunicar alguma coisa, tanto nos rituais quanto no dia-a- dia.
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Minha cabeça tenta entender essa coisa intrigante. Se os editores dizem que poesia não vende, que poesia não rende, que ninguém compra poesia, que poesia não se negocia nas bolsas de valores, então, Senhores do Conselho de Sentença, dizei-me vós, por que cresce cada vez mais o número de poetas sobre a terra? Se a poesia não serve para nada, e se “lutar com palavras é a luta mais vã”, porque milhões de poetas recomeçam essa luta “mal rompe a manhã”?
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Na verdade, na verdade vos digo: há mais poetas hoje que ontem, e amanhã haverá mais poetas que hoje. E o caso da poesia é o mesmo da arte em geral. A poesia, como a arte, não morre nunca, porque mais que um gênero literário, é uma “função” da mente humana. Ela dá voz a algo que nenhuma outra arte ou forma de expressão pode expressar por ela. E algumas, não poucas, mas milhões e milhões de pessoas têm necessidade da poesia como uma “segunda língua”. Por isto cantam, por isto escrevem, por isto pegam seu dinheirinho e editam seus livros ou saem mundo afora falando seus poemas. E ao contrário da maioria das outras artes, que se transformaram predominantemente em negócio, a poesia vive uma situação ambígua: porque a palavra do poeta não se converteu em “commodity” e produto descartável que segue a moda e o mercado, ela guarda uma autenticidade e uma independência que a singularizam.
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Retomemos aquela afirmativa inicial de que a poesia e a filosofia não servem para nada. No entanto, como já o disse em outro texto e contexto, reinventando as leis naturais de Lavoisier:
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“Na poesia nada se perde. Na poesia o nada se cria e o nada se transforma”.
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Um comentário:

Anônimo disse...

Um texto notável!
E se já tinha razões para ter incluído este blog na lista de Blog de Ouro, esta foi apenas mais uma.
De qualquer modo, Renata, não cumpro as regras destes prémios pelo que estou a limitar-me a informá-la do facto.
Abraço