sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Envelhecer - Bastos Tigre


(Tela de John William Waterhouse)
.
.
Entra pela velhice com cuidado,
Pé ante pé, sem provocar rumores
Que despertem lembranças do passado,
Sonhos de glória, ilusões de amores.
.
Do que tiveres no pomar plantado,
Apanha os frutos e recolhe as flores
Mas lavra ainda e planta o teu eirado
Que outros virão colher quando te fores.
.
Não te seja a velhice enfermidade!
Alimenta no espírito a saúde!
Luta contra as tibiezas da vontade!
.
Que a neve caia! o teu ardor não mude!
Mantém-te jovem, pouco importa a idade!
Tem cada idade a sua juventude.
.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Eis Outra Vez a Primavera - Rainer Maria Rilke

(Tela de Gustav Klimt)
.
.
Eis outra vez a Primavera.
A Terra é um menino que sabe dizer versos;
tantos, oh tantos... Por aquele esforço
de longo estudo vai receber um prémio.
Severo foi o mestre.
Nós gostávamos
da brancura da barba daquele velho.
Agora podemos perguntar o nome
do verde, o azul:
ela sabe, ela sabe!
Terra feliz, em férias, brinca agora
com as crianças. Queremos agarrar-te,
Terra alegre. A mais jovial consegue-o.
Oh, o muito em que o mestre as instruiu
e o impresso nas raízes e nos longos
troncos difíceis: ela o canta, canta!
..

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Intimidade - José Saramago


(Tela de Amadeo de Souza-Cardoso)
.
.
No coração da mina mais secreta,
No interior do fruto mais distante,
Na vibração da nota mais discreta,
No búzio mais convolto e ressoante,
Na camada mais densa da pintura,
Na veia que no corpo mais nos sonde,
Na palavra que diga mais brandura,
Na raiz que mais desce, mais esconde,
No silêncio mais fundo desta pausa,
Em que a vida se fez perenidade,
Procuro a tua mão, decifro a causa
De querer e não crer, final, intimidade.
.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Um Dia - Eunice Arruda

(Tela de Neiva Passuello)
.
.
Um dia
um dia eu
morrerei
de sol, de
vida acumulada
na convulsão
das ruas
. .
um dia eu
morrerei e não
podia:
.
. há poemas escorregando de meus dedos
e um vinho não
provado
.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Presença - Helena Kolody


(Tela de Neiva Passuello)
.
.
Coragem de andar
sobre os precipícios
sem desfalecer
entre labaredas
mas não se queimar
com os violentos
e os indiferentes
no mundo inimigo
sem deixar de amar.
.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Assombros - Affonso Romano de Sant'Anna


(Tela de Augusto Gomes)
.
.
Às vezes, pequenos grandes terremotos
ocorrem do lado esquerdo do meu peito.
.
Fora, não se dão conta os desatentos.
.
Entre a aorta e a omoplata rolam
alquebrados sentimentos.
.
Entre as vértebras e as costelas
há vários esmagamentos.
.
Os mais íntimos
já me viram remexendo escombros.
Em mim há algo imóvel e soterrado
em permanente assombro.
.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

A Dança e a Alma - Carlos Drummond de Andrade

(Tela de Neiva Passuello)
.
.
A dança? Não é movimento,
súbito gesto musical
É concentração, num momento,
da humana graça natural.
.
No solo não, no éter pairamos,
nele amaríamos ficar.
A dança - não vento nos ramos:
seiva, força, perene estar.
.
Um estar entre céu e chão,
novo domínio conquistado,
onde busque nossa paixão
libertar-se por todo lado...
.
Onde a alma possa descrever
suas mais divinas parábolas
sem fugir a forma do ser,
por sobre o mistério das fábulas.
.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Por Mário Quintana ...


"A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas!
Quando se vê, já é sexta-feira...
Quando se vê, já terminou o ano...
Quando se vê, perdemos o amor da nossa vida.
Quando se vê, já passaram-se 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado.
Se me fosse dado, um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando, pelo caminho, a casca dourada e inútil das horas.
Desta forma, eu digo:
Não deixe de fazer algo que gosta devido à falta de tempo, a única falta que terá, será desse tempo que infelizmente não voltará mais."
.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

DIVULGANDO ...


.
A Academia Mineira de Letras realizará a Semana Cultural Machado de Assis, entre os dias 20 e 24 de outubro, com palestras, bate-papos e lançamento de livros.
..
No dia 20 de outubro, palestra do acadêmico Fábio Lucas, com o tema: “A condição feminina de Capitu”.
..
Dia 21, palestra da professora Maria Luiza Ramos: “Machado e a alma exterior”.
.
No dia 22 é a vez da palestra da Prof ª Letícia Malard: “Machado de Assis: ataque e defesa”.
..
No dia 23 teremos a palestra do Prof. Flávio Loureiro Chaves: “Machado de Assis: causa secreta da narrativa”.
.
E no dia 24, o encerramento solene sob a presidência do Acadêmico Evanildo Cavalcante Bechara, com a palestra: “Construção da língua literária no ideário idiomático do autor de Dom Casmurro”.
..
Todas as palestras têm a entrada franca e acontecerá na sede da Academia, no Auditório Vivaldi Moreira, que fica na rua da Bahia, 1466 – Belo Horizonte. Informações. 3222-5764.
. .
E-mail: atendimento@academiamineiradeletras.org.br
.

sábado, 18 de outubro de 2008

Ser Mulher - Gilka Machado


(Tela de Bernardo Marques)
.
.
Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada
para os gozos da vida; a liberdade e o amor;
tentar da glória a etérea e altívola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior...
.
Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
para poder, com ela, o infinito transpor;
sentir a vida triste, insípida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um senhor...
.
Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais...
.
Ser mulher, e, oh! atroz, tantálica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais!
.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

As Ondas - Sophia de Mello Breyner Andresen


(Tela de Ofélia Marques)
.
.
As ondas quebravam uma a uma
Eu estava só com a areia e com a espuma
Do mar que cantava só para mim.
.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Pergunta-me - Mia Couto


(Pintura de Simão César Dórdio Gomes)
.
.
Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue
.
Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos
.
Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente
.
Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer
.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Flor Experiente - Carlos Drummond de Andrade


(Tela de Alphonse Mucha)
.
.
Uma flor matizada
entreabre-se em meus dedos.
Já sou terra estrumada
- é um de meus segredos.
.
Careceu vida lenta
e mais lenta, peca,
para a cor que ornamenta
esta epiderme seca.
.
Assino-me no cálice
de estrias fraternais
O pensamento cale-se.
É jardim, nada mais.
.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Sabedoria - Helena Kolody


(Tela de Neiva Passuello - Auto-Retrato)
.
.
Tudo o tempo leva.
A própria vida não dura.
Com sabedoria,
colhe a alegria de agora
para a saudade futura.
.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Canção da Primavera - Mário Quintana


(Tela de Sandro Botticelli)
.
.
Primavera cruza o rio
Cruza o sonho que tu sonhas.
Na cidade adormecida
Primavera vem chegando.
.
Catavento enloqueceu,
Ficou girando, girando.
Em torno do catavento
Dancemos todos em bando.
.
Dancemos todos, dancemos,
Amadas, Mortos, Amigos,
Dancemos todos até
Não mais saber-se o motivo...
.
Até que as paineiras tenham
Por sobre os muros florido!
.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Ah, um Soneto ... - Álvaro de Campos

(Tela de John Duncan)
.
.
Meu coração é um almirante louco
que abandonou a profissão do mar
e que a vai relembrando pouco a pouco
em casa a passear, a passear...
.
No movimento (eu mesmo me desloco
nesta cadeira, só de o imaginar)
o mar abandonado fica em foco
nos músculos cansados de parar.
.
Há saudades nas pernas e nos braços.
Há saudades no cérebro por fora.
Há grandes raivas feitas de cansaços.
.
Mas - esta é boa! - era do coração
que eu falva...e onde diabo estou eu agora
com almirante em vez de sensação?...
.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

O Sol nas Noites e o Luar nos Dias - Natália Correia


(Tela de André Lanskoy)
.
.
De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.
.
E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.
.
Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.
.
Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.
.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Átimo - Leonor Cordeiro


(Tela de Fredric, Lord Leighton)
.
.
por um instante falhou no peito meu coração
milhares de células gritaram atordoadas
mas a sombra se foi deixando para trás
um rastro melancólico de insegurança e dor.
.

domingo, 5 de outubro de 2008

Vende-se Tudo - Martha Medeiros



(Tela de Henrietta Rae)
.
.
..........No mural do colégio da minha filha encontrei um cartaz escrito por uma mãe, avisando que estava vendendo tudo o que ela tinha em casa, pois a família voltaria a morar nos Estados Unidos. O cartaz dava o endereço do bazar e o horário de atendimento. Uma outra mãe, ao meu lado, comentou:
.........._ Que coisa triste ter que vender tudo que se tem.
.........._Não é não, respondi, já passei por isso e é uma lição de vida.
.
..........Morei uma época no Chile e, na hora de voltar ao Brasil, trouxe comigo apenas umas poucas gravuras, uns livros e uns tapetes. O resto vendi tudo, e por tudo entenda-se: fogão, camas, louça, liquidificador, sala de jantar, aparelho de som, tudo o que compõe uma casa. Como eu não conhecia muita gente na cidade, meu marido anunciou o bazar no seu local de trabalho e esperamos sentados que alguém aparecesse. Sentados no chão. O sofá foi o primeiro que se foi. Às vezes o interfone tocava às 11 da noite e era alguém que tinha ouvido comentar que ali estava se vendendo uma estante. Eu convidava pra subir e em dez minutos negociávamos um belo desconto. Além disso, eu sempre dava um abridor de vinho ou um saleiro de brinde, e lá se iam meus móveis e minhas bugigangas. Um troço maluco: estranhos entravam na minha casa e desfalcavam o meu lar, que a cada dia ficava mais nu, mais sem alma.
.
..........No penúltimo dia, ficamos só com o colchão no chão, a geladeira e a tevê. No último, só com o colchão, que o zelador comprou e, compreensivo, topou esperar a gente ir embora antes de buscar. Ganhou de brinde os travesseiros.
.
..........Guardo esses últimos dias no Chile como o momento da minha vida em que aprendi a irrelevância de quase tudo o que é material. Nunca mais me apeguei a nada que não tivesse valor afetivo. Deixei de lado o zelo excessivo por coisas que foram feitas apenas para se usar, e não para se amar. Hoje me desfaço com facilidade de objetos, enquanto que torna-se cada vez mais difícil me afastar de pessoas que são ou foram importantes, não importa o tempo que estiveram presentes na minha vida. Desejo para essa mulher que está vendendo suas coisas para voltar aos Estados Unidos a mesma emoção que tive na minha última noite no Chile. Dormimos no mesmo colchão, eu, meu marido e minha filha, que na época tinha 2 anos de idade. As roupas já estavam guardadas nas malas. Fazia muito frio. Ao acordarmos, uma vizinha simpática nos ofereceu o café da manhã, já que não tínhamos nem uma xícara em casa.
.
..........Fomos embora carregando apenas o que havíamos vivido, levando as emoções todas: nenhuma recordação foi vendida ou entregue como brinde. Não pagamos excesso de bagagem e chegamos aqui com outro tipo de leveza.
.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Noções - Cecília Meireles

(Tela de Guido Viaro)
.
.
Entre mim e mim, há vastidões bastantes
para a navegação dos meus desejos afligidos.
.
Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos.
Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que a atinge.
.
Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza,
só recolho o gosto infinito das respostas que não se encontram.
.
Virei-me sobre a minha própria experiência, e contemplei-a.
Minha virtude era esta errância por mares contraditórios,
e este abandono para além da felicidade e da beleza.
.
Ó meu Deus, isto é minha alma:
qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e precário,
como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e inúmera...
.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Por Fernando Pessoa...

(Pintura de Alma Tadema)
.
.
Levava eu um jarrinho
P'ra ir buscar vinho
Levava um tostão
P'ra comprar pão:
E levava uma fita
Para ir bonita.
.
Correu atrás
De mim um rapaz:
Foi o jarro p'ra o chão,
Perdi o tostão,
Rasgou-se-me a fita...
Vejam que desdita!
.
Se eu não levasse um jarrinho,
Nem fosse buscar vinho,
Nem trouxesse uma fita
Pra ir bonita,
Nem corresse atrás
De mim um rapaz
Para ver o que eu fazia,
Nada disto acontecia.
.